sexta-feira, 8 de abril de 2016

Não há atalhos


O debate em torno da  disputa na esfera política, pela continuidade ou não do governo do Partido dos Trabalhadores, tende a ignorar a nova configuração do capitalismo. Mesmo com todas as mediações entre uma e outra esfera, essas transformações de fundo são base material das determinações que se impõem para os Estados e para os governos. 

Impulsionados por EUA, o Tratado Transatlântico, o Tratado Transpacífico e do TiSA (tratado de comércio de serviços) ampliam em escala planetária as zonas de livre comércio e as garantias para preservar os interesses das empresas transnacionais de eventuais tentativas de mudança na política interna dos países. A imposição dos três tratados exige uma adaptação do marco legal e do funcionamento do Estado em cada país. As consequências destas modificações terão maior impacto sobre as populações da periferia. Países como El Salvador, e mesmo México desde 1994, só para citar alguns exemplos do continente, já sofreram desde a última década do século XX essa transformação. As áreas de livre comércio e a instalação de maquiladoras nesses países são amostras da tendência que os três tratados consolidariam como norma. O Brasil beneficiou-se de uma posição intermediária dentro da ordem que vem se configurando, servindo de operador para a realização, dentro da região e mesmo em países da África, da especialização dos países "destinados" à produção de commodities. O IIRSA (Iniciativa para a Integração Regional Sudamericana), criada em 2000 na reunião de presidentes da região, já tinha apostado em criar a infraestrutura necessária para o escoamento e circulação veloz de commodities. 

Durante os governos do Partido dos Trabalhadores, o Estado brasileiro tem agido com relativa eficiência para impulsionar a expansão do capital nesses ramos econômicos, no próprio território, no continente e em países africanos. E têm apostado no desenvolvimento da infraestrutura regional para essa finalidade de especialização produtiva. Esse papel diferenciado do Brasil deu margem e criou condições para a extração de lucros extraordinários para empresas com sede no território nacional e permitiu certo favorecimento à indústria de transformação local. Essa margem se estreitou com a promoção dos três tratados, a nova "pax americana", que toma a iniciativa de reorganizar as cadeias produtivas e seu funcionamento em escala planetária, com um controle mais concentrado por determinadas empresas. Essa "pax americana" arremete agora na América Latina.

No Brasil, a composição de classe interna que deu sustentação ao projeto dos governos do Partido dos Trabalhadores já não pode ser satisfeita. Por exemplo, o setor do empresariado industrial, que foi relativamente favorecido, não encontra o mesmo apoio e nem a representação deste segundo governo de Dilma Rousseff. Daí a virulência da oposição da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e o posicionamento da FIRJAN (Federação das Indústrias do Estado de Rio de Janeiro) em favor do impeachment. As novas determinações externas fazem com que o governo priorize outros setores, subsidie menos a indústria, aumente os juros e isto é ruim para o setor. 

Só que nem o PMDB e menos o PSDB se comprometem com uma política de apoio à indústria. Entre os partidos da ordem, nenhum cogita resistir a esta imposição externa. O que estão fazendo é disputar qual desses continuará administrando essa transição com estilos diferentes. Esta campanha judicial articulada com a campanha midiática que se realiza contra o PT terminará debilitando todos os partidos da ordem, uma vez que lançam investigações que revelam a rede de favores como prática inerente a governabilidade no capitalismo dependente. Isto demonstra a autocracia do Estado burguês na periferia, que implica às vezes em ilegalidades e às vezes em uso seletivo da lei para favorecer (no sentido da instituição do favor) um setor e não outro. A própria investigação Operação Santiagraha, deflagrada em 2004, que investigou pagamento de propinas a políticos, juízes e jornalistas por parte de banqueiros e lavagem de dinheiro,  foi engavetada porque ia desestruturar o Estado se tudo isto se expusesse. Os 315 políticos da lista da delação premiada da Odebrecht, por exemplo, não permitem manter a Operação Lava Jato com foco exclusivo no PT, mesmo com todos os dispositivos que mobilizam para tal. Mas também tem o processo de investigação sobre as contas de Cunha. E agora são divulgados os "Panamá papers", resultados da pesquisa de um consórcio de jornalistas investigativos, e que revela nomes de centos de políticos brasileiros envolvidos na criação de empresas em paraísos fiscais. Além de ficar fora do alcance da receita federal, as empresas estão sob suspeita de operar a lavagem de dinheiro de propinas e outras atividades ilegais. É difícil dizer como os partidos irão se recompor. Qualquer solução de caráter institucional que houver será uma solução necessariamente instável. Como ter autoridade se eles geraram uma desconfiança completa no funcionamento do Estado? 

Dentro dessa disputa, as classes trabalhadoras não têm meios para pesar na esfera política, não têm instrumentos para isto. Primeiro porque os instrumentos criados no anterior ciclo de lutas, iniciado no final dos anos de 1970, com a criação do PT, não representam a configuração atual da classe e perderam a relação orgânica com ela. Mas também porque estas organizações, do ponto de vista da estratégia política, permanecem coladas ao velho projeto e não vislumbram qualquer outra possibilidade. Elas não têm a confiança, o apoio, o reconhecimento da classe. Então o grosso dos trabalhadores não está se manifestando dentro dessa disputa. De fato, seja nas mobilizações, seja nas campanhas, a classe está observando e desconfia que será usada. O PT está demonstrando a sua forma de operar esta transição, seja com o "Lulinha paz e amor" ou com a sanção da lei anti-terrorismo.

O impeachment seria sim uma reconfiguração das relações institucionais. O que cabe a nós pensarmos é: em que medida esta ruptura vai trazer consigo um aparelhamento veloz do marco repressivo? Enquanto vemos a virulência do conflito nas instituições, apreciamos um aquecimento das lutas sociais, um crescimento em número e em radicalidade: na forma de greves, ocupações e mobilizações; em categorias de trabalhadores, estudantes secundaristas e povos indígenas. Desde 2013, por exemplo, fomos superando o número de greves de 1989 (maior marca desde o golpe de 1964). São greves de categorias de trabalhadores da indústria, da educação, de serviços (não raro precarizados), muitas vezes acompanhadas de ocupações dos espaços de produção, para garantir a fonte de trabalho. Mas vemos também a inclusão de uma nova geração de lutadores, trabalhadores ou filhos de trabalhadores que estudam nas escolas públicas, que realizam ocupações contra o processo de sucateamento e privatização da educação. Assistimos a uma ação ininterrupta de retomadas de terras pelas novas gerações indígenas, ante a paralisia da demarcação e o avance avassalador do agronegócio sobre suas terras. São lutas centrífugas aos polos que disputam na esfera política e não se deixam capturar por eles.

Essas lutas ainda não têm alcance nem continuidade nacional que resultem em novas organizações. A grande preocupação das classes trabalhadoras com relação a esta disputa é em que medida e como serão articulados os dispositivos repressivos, porque eles sim poderão afetar a amplitude dessas lutas. Mesmo essas ações que se recusam a serem capturadas no campo de forças que disputam na esfera política da ordem podem ser afetadas por um marco repressivo velozmente aparelhado. A velocidade que pretende tanto o PSDB e uma parte importante do PMDB pode criar situações muito instáveis.

Sobre essa questão, o elemento externo determinante, os EUA, ainda não tem uma opinião formada e consolidada. O complexo industrial-militar e petroleiro, que tem representação política no Partido Republicano impulsiona toda essa articulação midiática e judicial. Para este setor, a desestabilização e os conflitos localizados criam oportunidades para negócios com lucros extraordinários. O setor do Partido Democrata tem uma visão de conjunto, atentando menos aos interesses de um ou outro setor, e vem apostando numa dominação sem percalços. Ele vê com certa apreensão uma situação que rompa com as instituições republicanas. E, de fato, os governos do PT mostraram capacidade de lidar com os conflitos sociais. O PMDB e o PSDB não possuem essa capacidade de mediação de conflitos, e precisariam lançar mão apenas da força de repressão para realizar a transição. 

Dentro desse quadro todo, a convocação à mobilização por parte do governo e do PT, é feita dentro do marco estreito de manter "respirando com aparelhos" o apoio das organizações sociais. Eles convocam com a contrapartida do gesto isolado de desapropriação de áreas já arrecadadas, mas que mofavam nas gavetas da presidência, para comunidades quilombolas, ribeirinhos ou sem terra e a destinação de recursos para o programa "Minha casa, minha vida", que estava paralisado.

A oposição de direita mobiliza o ressentimento social das camadas médias contra os mais pobres. Alimenta o comportamento policialesco dessas camadas contra os mais pobres, se valendo do discurso da meritocracia. Não apenas na espuma das manifestações midiáticas, mas com consequências na sociabilidade no seu aspecto mais cotidiano.

Os partidos da oposição de esquerda apostam mais uma vez na constituição de frentes que se apresentem como um terceiro polo na esfera política. Reiteram assim a estratégia de procurar o povo aí onde ele não está, sem qualquer diagnóstico sobre a experiência que a classe está fazendo nessa conjuntura. Tanto o chamado para eleições gerais, como a proposta de assembleia constituinte apostam na possibilidade imediata da classe agir como protagonista na esfera política. Mas o cenário entre os trabalhadores é de descrença na participação institucional. Tanto daqueles que estão mobilizados nas lutas sociais, como daqueles que se digladiam em viver sua vida diante da crise econômica. Para eles, a narrativa flexível das novelas pede para continuar trabalhando e sobrevivendo com esperança em tempos melhores que virão. Para se lançar a batalhas maiores e mais decisivas, a classe precisa construir redes de solidariedade a partir dessas lutas parciais. É nas redes capilares da luta que pode se constituir um polo de cultura da classe, potencialmente socialista. 

Não há atalhos, a tarefa é impulsionar as lutas sociais e articulá-las, e não contorná-la.

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